Quinta-Feira de Ascensão

Da Páscoa à Ascensão quarenta dias vão. Quem não se recordar deste aforismo popular poderá consultar o Borda D’Agua, onde se registam tanto as festividades de carácter cívico como as de carácter litúrgico ou popular.
O hábito de fazer da Ascensão uma festa especial remonta ao século IV, para honrar o fim da missão do Redentor na terra e da sua entrada na glória do céu.
Esta festividade revestia-se de uma dualidade religiosa e pagã. Quanto ao aspecto religioso, outrora a liturgia era revestida de grande solenidade. Hoje em dia, nos meios citadinos passa a maior parte das vezes despercebida.
Na minha vila, era costume irem ranchos de moços e de moças em passeio pelo campo e regressarem com um raminho de flores campestres.
Como era constituído o ramo e qual o seu significado?
Este era constituído por: 2 espigas de trigo; 2 papoilas vermelhas; 2 malmequeres brancos; 2 malmequeres amarelos; 1 haste de oliveira florida (candeio). Quanto ao significado: as espigas de trigo representam o Pão, as papoilas, a Alegria, os malmequeres brancos, a prata, os amarelos, o ouro, a haste de oliveira, a Paz. O ramo era colocado em casa pendurado na parede por um prego durante todo o ano até à próxima 5.ª feira de Ascensão – um ritual que era premonição da sorte de ter abundância, tudo o que aquela simbologia significava.
Recordo particular e saudosamente uma destas quintas feiras vividas em Beja, localizada no tempo em meados da década de 50. 
Era uma tarde soalheira de Maio e o liceu situava-se não muito longe do campo. Saídos por volta das 3 horas, nós, as raparigas e os colegas da turma mista, resolvemos ir apanhar a espiga. Chegados ao campo, o Sol radioso começa a esmorecer, o céu fica carregado de nuvens negras, rebenta uma horrível trovoada e começa a chover torrencialmente.
Então, os rapazes gentilmente cederam-nos as suas capas, que pusemos pela cabeça semelhando camponesas com seus xailes. Assim chegámos às portas de Mértola (centro da cidade), o que gerou surpresa e crítica dos transeuntes. O que é que se espera duma cidade de mentalidade provinciana?, comentaram as nossas mentes irreverentes.
Eu tinha o hábito de comprar todos os dias o “Diário do Alentejo”. Não só porque sempre admirei a imprensa regional, como porque também não queria perder a coluna “Portas de Mértola às duas Horas” do saudoso José António Moedas, jornalista efectivo do diário do Alentejo. 
No outro dia, ele registava com humor e ironia a insólita passagem de algumas meninas do liceu, encharcadas até aos ossos, protegidas pelas capas de seus colegas, providenciais protectores e pontuais impedidores de uma valente gripalhada.
Vir no jornal como protagonistas das “Portas de Mértola às duas horas” num tempo de nenhum mediatismo, muita discrição e muita austeridade nos costumes, foi para nós uma aventura desmedida.

Talvez tenhamos tido sorte pelo facto do reitor do liceu não ter lido nesse dia o “Diário do Alentejo”, pois eram tempos austeros em que qualquer acto irreflectido custava caro à juventude em termos de punição. Pessoalmente receava, pois havia apenas dois meses que levara uma falta injustificada por ter sido apanhada a desenhar o retrato do professor de Francês, ainda por cima com um piolho na cabeça. Resultado: fui posta na rua pelo professor e a falta foi enviada ao encarregado de educação.
Felizmente que esta quinta feira especial terminou bem, mas ficou na minha memória indelevelmente.

Maria Vitória Afonso

Nota do Facebook: «Muito conhecimento das práticas populares, muita síntese para descrever tudo isto, muito boa escolha de vocabulário, muita graça e envolvimento pessoal na própria história. Mereces um “Summa cum laude”. O professor (toma…) António Henriques »

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