O Ti’ Manel dos Farrapos

Este texto ganhou o 2.º prémio nos Jogos Florais de 2018 promovidos pela Usalma- Universidade Sénior de Almada.

                                                                                                                                                                                                                              Escreve António Henriques

Já viveste tantos anos, já conheceste um sem-número de aldeias, já te inebriaste com paisagens tão diversas e com povos e culturas tão inóspitas… Porque é que a imagem do Ti’ Manel dos Farrapos não te saiu da cabeça?

Beirão de nascimento, cidadão do mundo pelas incursões geográficas e especialmente pelo gosto de olhar e sentir rostos, paisagens, sabores e cores outras, eis-me agora apegado à minha meninice, querendo dar vida aos mistérios que povoavam a minha cabeça e que me encheram aqueles anos de pé descalço, cheios de uma liberdade feliz, a percorrer lameiros e encostas saboreando frutos e prendendo taralhões nas minhas costelas e costis.

Claro, tinha pais e irmãos – nesse tempo procriar era uma função importante para deleite privado e para aumentar a força braçal nos trabalhos agrícolas. Mas cada um deles tinha as suas tarefas e os pais não precisavam de olhar pelos filhos. Os centos de olhos da aldeia encarregavam-se deles e aos seus ouvidos chegavam as boas e más novas de cada dia. Assim, era fácil, em tempo de férias, sair com a alvorada, carregar uma merendinha e viajar por aqueles campos sem fim com um ou dois amigos, em aventura, saboreando o inesperado, uma cobra a desenroscar-se e a perturbar o nosso caminho, um lobo que de longe nos olhava e seguia tão assustado como nós, um parzinho escondido a praticar as primeiras experiências de toque e afasta-te antes que te vejam…

Também se iam conhecendo animais, aves, pessoas, a natureza no seu estado virgem, com o gozo de ver tudo de perto, palpar, cheirar, escutar o cuco distante, o assobio do melro ou o gaio grasnador.  Aqui e ali, os vizinhos nos seus trabalhos agrícolas, o chiar das carroças ou ainda o retinir do ferro amolecido pelo calor a enformar-se de sacho, enxada, picareta ou simples ferradura de burro ou macho. O mais apetitoso de ver, no entanto, era o ferrar das rodas das carroças, com aquela brasa vermelha circular a encaixar na estrutura da roda em madeira, com o ferreiro e seus ajudantes a acertar medidas e outros aos gritos, à volta, a apaziguar com muita água a ânsia destruidora daquele ferro feito lume. Encaixe perfeito e a roda fica pronta para se acoplar à caixa da carroça. Nunca se perdia este espectáculo!

Era assim, neste viver despreocupado, que se passavam os dias. As pessoas também conviviam umas com as outras de modo natural, sem invejas ou toleimas, aceitando o pão nosso de cada dia como dádiva predestinada, para uns mais dádiva e para outros mais maldição. E ajudavam-se reciprocamente, colaborando nas tarefas agrícolas, ora agora na apanha da minha azeitona, com o búzio a marcar a hora de partir, ora depois na ceifa das tuas leiras. E organizavam o calendário do forno colectivo e do moinho comum, onde cada família possuía o magro quinhão de meio dia mensal.

Neste viver diário, sem notícias de rádio ou televisão, a monotonia era perturbada de vez em quando por algum forasteiro que passava por razões da sua própria sobrevivência. O amola-tesouras, bem útil na recuperação de guarda-chuvas e restauro dos pratos, o capador, cuja acção bem se sentia, por alturas de Natal, no gosto da carne de porco, o marchante, que nos levava algum cordeiro ou cabrito sobrante para o açougue, eram figuras conhecidas e desejadas por todos.

Mais perturbadoras, chegavam as ciganas para ler a sina ou impingir tarecos e os pedintes, que não se sabia bem o que procuravam, se alimentos se os bens alheios.

Mas, entre este grupo, havia uma figura inconfundível, de bons modos, cara engelhada, longos cabelos acinzentados em pasta, farta barba russa que suas mãos cofiavam vagarosamente, dedos como montra de anéis, sempre descalço, unhas a sobrar dos dedos. E, no meio de tanto colorido, o homem vestia-se de trapos, o que para as crianças até revelava uma indomável vontade de ser diferente. Eram tiras de tecido penduradas umas das outras, que começavam no pescoço e ombros e chegavam a meia perna, de modo a ter os joelhos libertos para qualquer acção mais complicada, como seja baixar-se até ao chão para recuperar qualquer pechisbeque, ou subir alguns degraus por razões que vamos conhecer brevemente. Eram cargas e cargas de faixas têxteis sobrepostas a fazer um pesado chumaço para assim se defender do frio e mesmo do calor.

Seu nome? – O Ti’ Manel dos Farrapos, que outro nome não tinha, pois nem ele precisava de o usar. A sua figura ímpar sobressaía, mal se avistava ao longe. De parcas palavras, não incomodava ninguém. Chegava perto de uma casa e logo os gaiatos se juntavam, brincavam com ele, sempre placidamente bonacheirão. Não dava prendas, não oferecia bolachas; olhava as crianças e outros circunstantes em paz, respondendo a cada pergunta com a mesma sabedoria: – «Pois, ‘stá bem, sim senhora»!

– Veio fazer-nos uma visita?

– Pois, ‘stá bem, sim senhora!

– Sente frio, ti’ Manel?

– Pois, ‘stá bem, sim senhora!

– Quer uma sopa?

– Pois, ‘stá bem, sim senhora!

Por mais de uma vez, a compaixão das pessoas era tanta que o levavam para casa, davam-lhe um bom banho quente, vestiam-no com um fatinho jeitoso e ele saía de lá transformado em aldeão exemplar nos modos e no vestir… Nada recusava. Só não perdia a liberdade de ser e viver como ele quisesse depois de deixar aquelas alminhas caridosas. Que acontecia então?

Retirado do convívio da aldeia, bastava um ou dois dias para mudar de pele, um pouco à moda das cobras. Com um canivete, começava a rasgar em farrapos as peças que lhe vestiram, atando-os uns aos outros como penduricalhos sobrepostos e assim se tapava. Para esconder braços e pernas é que a engenharia faltava e o nosso amigo não se incomodava de os oferecer em espectáculo, sempre com todo o respeito, o que permitia esta contínua relação quase familiar com a aldeia.

As dádivas dos vizinhos iam alimentando este ser único e nem pesavam muito aos doadores, já que inúmeras eram as aldeias do seu peregrinar e ele só aparecia de tempos a tempos. Além de uma sopinha de legumes, uma fatia de broa com uma sardinha frita em cima ou um pedaço de toucinho ou chouriço, eram os alimentos deste viandante. Também gostava dos sabores das crianças e era vê-lo perto delas e do forno à espera que uma batata ou uma cebola saíssem assadas do borralho, ao tempo da cozedura do pão.

O forno, que congregava toda a aldeia, ali mesmo no largo maior onde tudo acontecia, desde reuniões para decidir interesses comuns ou saborear ajuntamentos aos domingos com jogos e bailes, estes ao som de uma concertina paga com o dinheiro das rifas de um bolo que se sorteava, era esse forno também o ninho quente a que se abrigava o Ti’ Manel dos Farrapos nas noites frias de inverno. As crianças não queriam acreditar. Como era possível suportar aquelas altas temperaturas? E como era ainda possível subir para o alto e pequeno parapeito do forno e conseguir passar por aquela porta tão estreita, ele, um homem bem constituído? Mas muita gente o viu lá instalado, no aconchego dos restos das cinzas, que de cobertores nunca precisou! Vamos lá nós, gaiatos, duvidar dos dizeres dos nossos pais… Eu sempre acreditei neste facto.

Nunca alguém soube ao certo de onde vinha, onde nascera, que familiares eram os seus… Dizia-se que tinha vivido jovem numa aldeia perdida na montanha, onde a neve tolhia os movimentos e a vida era mais difícil por falta de terras férteis e ausência prolongada de comunicação com o exterior. Mas não havia certezas. Também não se podia confirmar a sua relação com uma jovem mulher que o acompanhava pela serra a fazer carvão com as cepas das torgas, em busca de algum dinheiro. Um dia, o mercador do carvão terá levado a mercadoria e a apetitosa moça, deixando o nosso homem sem tino para o resto da vida.

Mais efabulada era outra versão, muito ao gosto dos pequenos, que culpava as bruxas pelas desgraças do nosso homem. Andaria ele pela montanha, já noite adentro, cansado de uma jornada extenuante, acompanhado da sua lanterna, aquele utensílio quadrangular com vidros a proteger a chama de uma torcida embebida em azeite, quando, num cruzamento de caminhos, deu com um baile à meia-noite, em absoluta surpresa. Ao tempo, falava-se tanto de bruxas que ele nem duvidou: são elas mesmo! E resolutamente aproxima-se, pois com as bruxas podia ele. Alguém disse que já uma vez as tinha enfrentado sem medo quando o quiseram derrubar da carroça. Parou, pegou na forquilha que levava e elas desapareceram… Assim, este jovem avançou destemido e, a convite de uma delas, dança uma ou duas modas bem aconchegantes em volúpia; no seguimento da festa, com comes e bebes, começa o rapaz a sentir tremuras nas pernas e braços, seguidas de convulsões que o estontearam, desfaleceram e prostraram até ao dia seguinte.

Que bebida do inferno o terá amaldiçoado para toda a vida?

Assim mo contaram e assim o transmito, pois, se não acreditamos em bruxas, a verdade é que também dizemos com frequência «que las hay, hay…», em versão castelhana.

Passaram os anos, os jovens começaram a sair da aldeia para, após a quarta classe, continuar os estudos em liceus, seminários e colégios distantes. Quando, no tempo de férias, nos aparecia o Ti’ Manel, era uma renovada festa, pois nos sentíamos mais irmanados e solidários com aquela figura icónica da nossa meninice. Nunca alguém o desrespeitou. Então, éramos nós a carrear para ele alimentos, doces, bebidas, que ele agradecia com a conhecida frase, a única de que me lembro:

– Pois, ‘stá bem, sim senhor!

Soubemos do seu desaparecimento mais tarde, em Outubro de 1957, com a “gripe asiática”, que dizimou inexoravelmente muitos dos nossos vizinhos, por falta de medicação adequada. E para nós todos, foi-se com a sua morte a morte das ingénuas vivências de outros tempos.

Mas foi com elas que nos estruturámos e enriquecemos. Valeu a pena!