RECORDAR

Nasci no Alentejo, mas, muito nova ainda, fui viver para Setúbal com pais e irmãos.

O azul do rio Sado, o verde da serra da Arrábida e o cheiro doce das laranjeiras em flor foi o cenário que me acolheu e embalou, mimando a minha infância e juventude. Tudo corria bem, era feliz.

No entanto, hoje recordo um pequeno pormenor ou fenómeno que perturbou muitas vezes o meu sono de criança. Existia na cidade uma mulher solitária, velha, muito feia, muda, andrajosa, com panos enrolados à cabeça, cara muito escura sulcada de rugas profundas, boca grande sem dentes que ia quase de orelha a orelha, de aspecto aterrador, que emitia uns sons que mais pareciam de animal selvagem do que de um ser humano. Segurava um enorme cajado de madeira com que ameaçava e batia a quem se aproximasse.

Alguns miúdos mais atrevidos e malcriados, porque os pais não os ensinavam, provocavam, riam-se, troçavam e desafiavam aquela pobre infeliz que, talvez revoltada com a sua sorte, corria atrás deles com agressividade. Nesses momentos, gritava, urrava, esbracejava, dava saltos como um animal e corria atrás dos miúdos com o cajado em riste.

Até os adultos se assustavam. Ouvíamos gritar ao longe: – Olha a muda! Vem aí a muda!… Não havia instituição ou entidade sanitária que tomasse conta daquela desgraçada. Nem a polícia impedia aquelas provocações.

Passaram muitos anos, muitos anos. Ainda hoje, nos meus sonhos pesados e delirantes, que me deixam com dores de cabeça, vejo a muda e tenho medo.

Maria Irene Veiga

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