Estou a escrever este texto a pensar no amigo que nos deixou há poucos meses sem se despedir e a quem estavam ligados laços de muita estima e elevada consideração. A morte é assim: repentinamente, vão-se as tarefas e adeus a tudo e a todos, sem contemplação…
É no velório do meu amigo, José Tomaz Ferreira, que tenho conhecimento do seu livro, um testemunho escrito, publicado no ano anterior, onde ele mergulha no ambiente histórico que entreteceu e condicionou toda a sua existência com a consciência aguda e a solidez do querer que o identificavam. Intitula-se o livro “O TRONO E O ALTAR – EM TEMPOS DO ESTADO NOVO”, da Edit. VERITAS, Guarda, numa edição de 300 ex. e 182 páginas.
Foi de rompante que li esta pérola e foi para degustar melhor o seu conteúdo que o voltei a ler. Para quem viveu ou se interessa pelos ambientes eclesiásticos entre os anos 60 e 74, encontrará aqui uma história pitoresca nos seus eventos e deliciosa nos meandros que tecem as relações entre Igreja e o Estado Novo, cada um a defender a sua verdade, muitas vezes toldada de conveniência e conluio, contra o espírito de Evangelho (“A verdade vos libertará!”).
O autor começa por descrever em poucas páginas a história das relações entre o Estado e a Igreja, desde o roubo descarado de todo o património e expulsão das ordens religiosas por Joaquim António de Aguiar, o Mata-frades, no séc. XIX até à Lei da Separação, apressadamente decretada pela República, de que resulta uma declarada subordinação do clero ao Estado. É neste estado das coisas que a chegada de Salazar, após a Ditadura e a Constituição de 1933, serena os espíritos cristãos, que veem nele o arauto de novos tempos. A amizade de Salazar e do Cardeal Cerejeira nos 11 anos de convivência em Coimbra em defesa dos princípios cristãos (Salazar, antigo seminarista de Viseu e católico praticante!) faziam adivinhar novos tempos…
Neste aconchego, ainda por cima com a assinatura de uma Concordata com a Santa Sé, a Igreja passou a conviver com a situação política, assumindo como uma bênção a proteção do Estado Novo. A hierarquia católica abençoava o regime, mas ia esquecendo os seus podres – regime de partido único, controlador das consciências através da censura e da Pide e com uma rede imensa e escondida de informadores-delatores sem qualquer direito ao contraditório.
É nesta malha obscura que o José Tomaz se vê enredado sem sequer se dar conta. Estas são as manápulas do poder – o TRONO do título – que insidiosamente vai controlando os seus movimentos. Quanto à hierarquia religiosa daquele tempo, os respeitáveis bispos não estavam habituados ao diálogo e muito menos a contrariar as tendências políticas – era o ALTAR submisso, com exceções raras como o caso do bispo do Porto.
Depois de ter estudado em Roma, em 1961 o novo padre é convocado pelo bispo da Guarda para o seminário com mais dois colegas para a função de prefeitos, isto é, responsáveis diretos dos alunos na condução da vida diária da comunidade. Logo aqui, começam as incongruências: o bispo não permite que o jovem padre vá a Roma fazer exame à última cadeira para completar o curso. E o jovem padre obedece, pois é esta a sua postura pessoal.
Durante cinco anos, esta equipa disciplinar usa a sua juventude e saber para criar no seminário um ambiente de boas relações, educando os jovens seminaristas nos valores humanos e cristãos. Contra o ritualismo (em que bastava obedecer), eles incitam os alunos no espírito de iniciativa, na relação de confiança (pela proximidade), no saber justificar as ações, não dando ordens sem as justificar, no respeito pelo outro, o que origina uma mentalidade nova.
Parece que esta postura desagradava a alguém, especialmente àqueles que não toleravam críticas ao estado das coisas na diocese e no país. Aos ouvidos do Bispo e dos colegas mais velhos esta atitude apodava-os de “desorientados”. Mas o pior era o que chegava às centrais de informação política através dos informadores anónimos e contra estes delatores ninguém se podia defender. E eles existiam até “à mesa das refeições no Seminário” (pág. 54).
Na diocese da Guarda, o P. José Tomaz era muito considerado e com facilidade era cooptado pelos seus colegas para o representarem no Conselho Presbiteral. E nunca ninguém se aproximou dele a pedir explicações ou a fazer críticas: “entre o Prelado e a minha pessoa … um silêncio apocalíptico”! p. 81)
No seu dia-a-dia, a equipa sacerdotal ia fazendo o seu serviço e o número de seminaristas que chegavam às ordens sacras não destoava dos anos anteriores: nos cinco anos anteriores a 1961, ordenaram-se na Guarda 37 padres. Entre 1961 e 1966, com estes suspeitos formadores, ordenaram-se 32 e mais 3 que foram para ordens religiosas…
Em 1966, o Bispo renova por completo a equipa de formadores, voltando à educação tradicionalista, em que até a correspondência era censurada. E durante 11 anos a diocese da Guarda não viu mais nenhum novo sacerdote. O que leva o meu amigo a friamente dizer que o bispo inverteu a parábola dos talentos: «premiou os estéreis e pôs a ferros os que conseguiam produzir!». (pág.72)
Conclusão: o José Tomaz e colegas criaram no seminário uma “célula comunista”, que afinal dera frutos só após eles terem saído (!!!), pois “não fomentava a piedade, a obediência, o amor ao sacerdócio” (pág. 73-74). E num relatório da Pide de 1968, a chave da “expulsão” deles do seminário era: «incutiam no espírito dos Seminaristas ideias políticas contrárias ao actual regime» (pág. 86). O TRONO insidiosamente sempre se imiscuía nas coisas do ALTAR…
As ideias novas do Vaticano II iam moldando as mentalidades. Até o Bispo da Guarda, em 1966, quer o “Movimento por um Mundo Melhor” na sua diocese. Fazem-se dois cursos e nos dois cursos, a pedido do prelado, vota-se no sacerdote que vá orientar o Movimento. Como nas duas votações é eleito o “desorientado” padre José Tomaz, o Bispo não o nomeia!...
Mas tudo se encaminha para o desterrar para Lisboa: «em nome da obediência, coloquei a decisão nas mãos do Bispo, assegurando-lhe que estava disposto a fazer o que ele mandasse». (p. 89)
Nomeado Assistente Nacional-Adjunto do Escutismo – C.N.E., desenvolveu a formação religiosa dos seus dirigentes, mas depressa notou que, mesmo aí, a conivência com as orientações do poder político era flagrante e a má fama que trazia da Guarda chegou a alguns dirigentes da Junta Central e até o Arcebispo de Braga, Assistente Nacional, chega a desqualificá-lo num Encontro Nacional com o epíteto de SACRISTÃO. Mesmo assim, registo o que ele diz na pág. 92: «Devo ao Escutismo os momentos mais gratificantes… foi nele que cimentei amizades que até hoje se mantêm intactas…» (NOTA muito pessoal: foi o escutismo que também me aproximou deste grande homem, sempre alegre e íntegro).
A Pide continua atenta e sente-se a sua presença nas nomeações para professor nos colégios, de onde ele provia ao seu sustento. Por razões políticas, não conseguiu sequer o Diploma de Ensino Particular por “falta de idoneidade moral e cívica” (p. 149). Nos primeiros anos, a sua aceitação como professor de Moral passava com a frase: «não oferece garantias de defesa dos superiores interesses do Estado”, mas em 1972/73 “a Pide endureceu a sua posição a meu respeito” (p. 118) e foi vetado para o cargo de Assistente religioso da Mocidade Portuguesa na Escola Pedro de Santarém. Esta função religiosa dependia do Patriarca de Lisboa e numa audiência com ele, mais uma vez o meu amigo ficou a saber que ninguém, nem mesmo o Cardeal ia «exigir que o Estado não interferisse no governo da Igreja… Tudo era feito a bem da Nação… Mas sempre com o trono a exigir a protecção do altar.» (p. 142)
Esquecido pelo seu Bispo, impedido de se sustentar pela Igreja, o José Tomaz virou-se para a vida civil e geriu com muito talento a revista Lúmen e escreveu para jornais.
António Henriques