MEMÓRIAS

Sempre vivi na cidade e não me foi dada a oportunidade de conhecer a beleza e importância da tradição e costumes das diferentes regiões do nosso belo país.

Ao ouvir os meus colegas relatarem experiências e acontecimentos vividos por eles, nomeadamente nas Beiras, fico triste e lamento a minha ignorância.

Setúbal era nos anos 40 e 50 uma cidade que vivia essencialmente da pesca e da indústria da conserva de peixe. No Verão, no tempo da abundância de sardinha, as fábricas laboravam dia e noite; os industriais enriqueciam e os operários viam o seu trabalho mais bem remunerado. Mas no Inverno, no tempo do defeso, para muitos a fome apertava e acentuavam-se as diferenças sociais.

Simultaneamente, enquanto durou a Grande Guerra, com as restrições e as carências alimentares, a tuberculose ceifou muitas vidas. Vivia-se também em clima de angústia em muitos lares com a ameaça de homens, militares ou não, serem mobilizados para a eventualidade de partirem para combater ao lado das forças aliadas, se Portugal entrasse na guerra.

A sociedade, nessa época, era muito selectiva. Começava logo no ensino: os jovens em idade escolar frequentavam o Liceu ou a Escola Comercial de acordo com as possibilidades monetárias dos pais e era notória certa rivalidade entre os alunos dos dois meios escolares.

Para todos, o dia 1.º de Dezembro era especial e fazia-se anunciar logo às oito da manhã com foguetes e o Hino da Restauração tocado nas ruas pela Banda da Sociedade “Capricho Setubalense”.

Os alunos do Liceu (eu e mais três irmãos), sem outra alternativa, pertencíamos à Mocidade Portuguesa (de má memória…) e participavam em actividades lúdicas e desportivas.

Mas a alegria e felicidade maiores era o Feriado Municipal – 15 de Setembro, Dia do Bocage – conhecido nas meios literários por “Elmano Sadino”, para nós uma referência e orgulho. Era o dia da nossa liberdade, meninas, pois saíamos sem guarda-costas (leia-se pais e avós), ganhávamos um vestido e sapatos novos e uns dinheirinhos para guloseimas.

Assistíamos às comemorações oficiais na Câmara Municipal, imponente, com a larga escadaria iluminada e com passadeira vermelha, muitas flores, colgaduras nas varandas e muita gente, convidados especiais, autoridades militares e eclesiásticas e povo apreciador do poeta.

No interior, no Salão Nobre, discursos, debates, poemas lidos com muita paixão e também algumas anedotas brejeiras lembradas por participantes mais atrevidos. Os festejos acabavam à noite com um concerto sinfónico tocado pela Banda “Capricho Setubalense” no coreto da Av. Luísa Todi.

Para nós, jovens cansados com tantas emoções, alguns disparates à mistura e a barriga cheia de tremoços, amendoins, pevides e gelados, acabava o dia da nossa liberdade, graças ao Bocage.

Maria Irene Veiga

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