“MISERICÓRDIA”, de Lídia Jorge

Acabo de ler mais um livro de Lídia Jorge – “Misericórdia”, um romance cativante, intenso no fluir da vida entre as personagens que compõem a história. Diz a autora que este texto surge a pedido de sua mãe, que vivia já num lar os últimos tempos da sua existência, o chamado Hotel Paraíso.
O meu espanto vai para as muitas vivências, ações, sentimentos, relações de amor e desamor que enchem aquelas vidas, setenta residentes que conseguem dar gosto, ilusão, novidade e emoção aos seus dias, quando a nós parece que apenas haveria vazio, silêncio, desânimo e monotonia. «Aqui, no Hotel Paraíso, é raro o dia em que alguém não morre. Morre um, entra outro, somos sempre setenta. Mas com o sargento não era esperado» p.142) E as peripécias surgem, fruto do amor, do ódio, das zangas, dos encobrimentos…
Achei o livro, nas suas 400 páginas, fácil de ler, entusiasmante, nos seus 78 episódios e com uma mancha gráfica agradável, sem letras pequeninas! Será letra com o tamanho 14?!
O enredo é marcado pela personagem principal, Maria Alberta, carinhosamente tratada por D. Alberti. No meu tempo, dizia-se que era um narrador participante (dispenso palavras mais esquisitas!), a contar a história que vive e a ecoar em si própria as histórias dos seus companheiros residentes, dos funcionários colaboradores e do mundo que lá fora lhes passa ao lado. A narração na primeira pessoa é tudo: descreve situações, reflete, critica, aproxima-se das amigas ou reage violentamente (lembro o momento em que o rapazinho é apalpado por alguém que não respeita o seu género…).
Os acontecimentos também se encontram balizados entre abril e dezembro de 2019, são contemporâneos e apanham o início da pandemia, com aqueles processos trágicos que vivemos sem explicações racionais e atitudes um tanto fantasmagóricas. A D. Alberti com muita serenidade lá diz que «As mãos dos astronautas (!!!) estavam cobertas por luvas brancas como as vestes que os protegiam de nós». (p. 453)
Basta um ataque de formigas para os dias mudarem de feição e todos se sentirem num barco à deriva, onde uns por sorte são felizes e outros perdem tudo.
Mas o que mais me impressionou foi a capacidade de reflexão de D. Alberti, como a chamavam, que da sua cama dá fé de todo aquele mundo à sua volta, os segredos entre residentes, da amizade com as colaboradoras, em que sobressai Lilimunde, uma brasileira cheia de brio que é amiga e confidente e quase é um espelho do que em nova sofreu a D. Alberti.
Também é muito humano o apego às pequenas coisas, um saquinho com um papelinho com uma história de amor numa linha.
É verdade que todos os residentes são frágeis, mas aquele lar está cheio de vida, fruto de uma ficção maravilhosa da autora. Estava a esquecer a força personificante da noite. Por várias vezes, a Maria Alberta se vê confrontada com a noite, uma sombra medonha, quase como um ser físico que se atira para cima da doente, a ameaça, a interpela e arranja pretextos para levar a sua adversária, que porfia em se agarrar à vida. A leitura então chega a arrepiar.

Foi leitura encantatória para mim, como a do rapazinho que veio ao lar duas vezes ler uma história à Maria Alberta.
António Henriques

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