Quando me ponho a ler textos de amigos a falar da nossa terra ou da nossa meninice, imediatamente a minha imaginação dá voltas e começa a visitar locais significativos de há muitos anos atrás. É um exercício rejuvenescedor, sem dúvida! Por isso, começo a escrever!
Eu nasci em 39, o começo da 2.ª Guerra Mundial, cujos efeitos daninhos também cá chegaram, mesmo que o monumento a Cristo-Rei em Almada seja um agradecimento por Portugal não ter entrado na guerra.
Teria eu três ou quatro anos, faço a primeira grande viagem até às Minas da Panasqueira. O meu pai foi trabalhar, como carpinteiro, naquele empreendimento, que ganhara estatuto de importância, dada a necessidade do volfrâmio para a indústria militar, soube eu mais tarde.
A empresa precisava de mineiros para a extração do tungsténio das entranhas da serra. E contratava carpinteiros para construir habitações para tanto pessoal que ali se empregava. Assim cresceram aquelas casas espalhadas pela encosta da montanha, sendo cada habitação para quatro famílias, duas no rés-do-chão e duas no primeiro andar. Curiosamente, o fogão negro de lenha era coletivo, e as quatro senhoras lá se acomodavam à volta do mesmo fogão, no rés-do-chão, para preparar as refeições…
Tempos de guerra não ajudam as famílias (a guerra civil de Espanha acabara com feridas bem gravosas para a sociedade e a economia! Começa o tempo das senhas para poder comprar um Kg de arroz ou de açúcar…). E o meu pai decide levar a família para as minas para aí ganhar dinheiro, com o qual conseguiu levantar a casinha para albergar a sua família.
Não sei quem nos transportou por aqueles 120 km. Pelo menos até Castelo Branco alguém nos levou de carroça. E lá se fez a primeira grande paragem, dessa me lembro bem. Os pais saem a fazer algum avio e eu fico com as bestas na carroça a dormir. Pois, pois, quando acordo e me sinto sozinho, salto para o chão e começo a gritar pela mãe, chorando por aquela avenida grande, bem diferente das ruelas do meu Ripanso. O movimento era pouco e depressa vejo ao longe os meus pais. Primeira recordação de criança… Hoje seria crime e cadeia para os progenitores, caso a polícia se tivesse metido no assunto!
Do resto da viagem não tenho memória. Só me vejo a brincar no tal bairro dos mineiros, correndo e saltando num espaço junto à habitação, tendo por cima uma estrada por onde de vez em quando passava algum veículo.
E lá vem outra memória: os gaiatos gritavam a qualquer movimento na estrada, a grande distração e novidade na monotonia dos dias. A maior gritaria acontecia com este dito: “lá vem a camioneta da cebola!”. O Tonho ouvia, olhava, olhava para a “camionete da carreira” e cebolas nunca vi! E eu já sabia o que eram as cebolas, que me ardiam nos olhos…
Olhar diariamente aquela camioneta da carreira era também sonhar com o desconhecido, aquele desejo natural de explorar, ver mundo, que ainda hoje me leva a passar por locais diferentes, inóspitos por vezes, o que muito desagrada à minha mulher. Semelhante atitude tinha eu em Vila Velha de Ródão, aos oito anos, quando corríamos para ver passar ao longe aquele comboio, em que se distinguiam duas carruagens “de prata”, tão branquinhas ao lado das outras mais negras, onde um dia chegou o Sr. Presidente da República, Óscar Carmona, a quem as criancinhas da Escola Primária bateram palmas na estação de Ródão… E eu a sonhar entrar naquela cobra ondeante que tão bem acerta nos carris, mas tive de esperar mais uns anitos…
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Passaram 30 anos. Como professores no Colégio de S.to António em Portalegre, o P. Eusébio convida-me para irmos passar as férias de carnaval na sua Aldeia de S. Francisco de Assis, bem pertinho das Minas da Panasqueira. Com ele fiz outras viagens memoráveis pelo sul de Espanha, mas não posso escrever sobre tudo ao mesmo tempo.
O frio apertava, mas a salamandra da D. Lucinda aquecia-nos até às entranhas. E durante o dia conseguimos licença para entrar naquelas cavernas sem fim, onde os mineiros ganham o pão e a silicose que os levará à sepultura. Trabalho duro, mais duro que o dos carpinteiros…
Em conversa, diz-me o amigo: – esta estrada continua e acaba ali à frente numa terra de nome S. Jorge, que antigamente se chamava Cebola…
– O quê? Cebola? Agora compreendo. Está desvendado um mistério da minha meninice. Valeu a pena vir até às Minas!
Não tivemos tempo de ir até à Cebola (agora com maiúscula!) porque, entretanto, começa a nevar com tal intensidade que nós decidimos encurtar a estadia e zarpar para Portalegre antes de o nevão nos cortar o caminho.
António Henriques