3 – Da escola de antes aos analfabetos de hoje
O prof. Flor era um professor rigoroso, mesmo severo, embora socialmente fosse muito considerado, desempenhando então o cargo de Delegado Escolar, acho eu, o responsável pela Escola e pelos outros professores. Até esta característica me deve ter plasmado a minha condição de aluno e a minha visão da escola, que considerei sempre um espaço digno, importante e insubstituível na moldagem dos cidadãos para o futuro.
Da segunda classe já falei. Comecei por aí a minha história, dado que foi nessa data que a escola passou a ser especial na minha vida.
Na continuação dos estudos elementares, volto na terceira classe à escola da Sobreira, passando a ser orientado pelo prof. Mendonça, dos Montes da Senhora, um jovem naquele tempo, muito alegre e bem-disposto, que sempre se dirigia a mim como o “Afonso Henriques”, epíteto que aceitei com agrado e mais me integrou. A escola era um edifício airoso, cheio de luz e espaçoso, nas suas quatro salas. A escola das meninas situava-se noutro edifício. Entrava-se na escola dos rapazes por uma larga escadaria. No terreiro em frente da escola, havia uma frondosa magnólia, de folhas sedosas e brilhantes que sempre admirei muito. Ainda hoje, passados mais de sessenta anos, a mesma magnólia lá se encontra a oferecer suas folhas e suas enoveladas flores brancas ao visitante.
Na quarta classe, mais um ano cheio de trabalho com o prof. Lalanda a debitar conhecimentos e sobretudo a envolver-nos numa disciplina férrea, para os seus alunos serem sempre os melhores no exame da quarta-classe na escola de Proença-a-Nova. “Ah! Seus malandros… Ah! Ladrões da minha alma…” perorava ele aos gritos naquela sala após um pequeno erro de seus pupilos. Muito se trabalhava na sala e fora dela. Depois de almoçarmos alguma fatia de pão com sardinha ou farinheira, ele de tarde levava-nos para a sua quinta na Sodina para continuar as explicações. Lá fazíamos mais exercícios de Matemática num tosco quadro de madeira pintada de preto, enquanto ele migava as couves e as misturava com farinha para alimentar as suas galinhas. Belos tempos! Chegávamos tarde a casa, mas íamos bem preparados para exame, em que passei «aprovado com distinção» …
Foi o ano mais rigoroso que vivi. E para ilustrar o dito, bem me lembro das 24 reguadas que levei, com mais alguns colegas, por andarmos a jogar à bola (uma bolinha de cortiça) durante o intervalo do almoço. As mãos ficavam vermelhas e inchadas. A cada ataque da menina dos cinco olhos, ora numa mão ora na outra, a dor lancinava. Eu confortava a vítima enfiando-a no quentinho do sovaco, depois sacudia-a para arejar e lá a oferecia ao verdugo outra vez. Que raio de peste seria um jogo de futebol para, naquele tempo, merecer tal castigo?
Por vezes faço comparações com a actualidade que me deixam surpreso. Se o meu avô, com quem nunca convivi, olhava para a escola como um entrave às tarefas diárias, lá teria as suas razões. A escola era uma ferramenta inútil para as actividades simples e rotineiras da agricultura naquela época. Hoje, um agricultor serve-se de outras ferramentas, o trabalho rural e a pecuária complexificaram-se a ponto de a escola ser indispensável quer para manusear tecnologias quer para desenvolvimento pessoal e social no mundo sofisticado que vivemos.
Curiosamente, o analfabeto não é só o meu avô! O mesmo fenómeno acontece hoje com a informática, um bicho-de-sete-cabeças para muita gente da minha idade que recusa actualizar-se, optando por atitude igual à do avô: “nunca precisei disso e não é agora que vou precisar”, ouve-se frequentemente. A curiosidade, o desejo de aprender são a pedra de toque que nos alça a patamares superiores. A todos os níveis, aprender, actualizar-se é a única atitude que nos faz trilhar caminhos seguros e mais conscientes. Lá vai o tempo do aprender para praticar. Hoje aprende-se praticando e questionando a prática em busca de uma superação. As células mentais não estiolam nem secam; podem reduzir capacidades se não se exercitam, essa é a única verdade.
António Henriques