“A Metamorfose”
Franz Kafka
Cardume Editores, Lda
«Um dia de manhã, ao acordar dos seus sonhos inquietos, Gregor Samsa deu por si em cima da cama, transformado num insecto monstruoso».
É fácil ler as 78 páginas da “Metamorfose”, de Kafka. Até se pode ler como um conto fantasioso para encher os tempos mortos. Mas, para mim foi uma surpresa a substância psico-sociológica que nesta historieta se pode encontrar.
De rompante, a história começa com as duas linhas que encimam este texto. Sem explicações, sem qualquer nexo de causalidade («porquê, meu Deus?»). Apenas o espanto: «O que é que me aconteceu?».
Depois deste choque inicial, inicia-se uma história de leitura fácil, que até as crianças compreendem.
Aquele bicho (barata, escaravelho?) humano, com memória, pensamento e coração, recorda a sua vida de caixeiro-viajante, cujo ordenado sustenta a família (pais e irmã). Mas, de um momento para o outro, tudo se altera com esta tão catastrófica metamorfose.
O corpo transforma-se numa enorme carapaça, rodeada de muitas pernas que não sabe controlar. Ao sair da cama, este corpo descontrolado cai no chão em grande estrondo, de onde não mais sairá, a não ser para uma rara incursão pelas paredes do quarto, que passa a ser a sua prisão. A família, ao dar pelo caso, arrepia-se, incrédula, afasta-se com receio e nojo e tenta esconder o novo habitante da casa. O pai até o pontapeia… A mãe não consegue aproximar-se e só a irmã mostra alguma compaixão, pensando que o bicho é seu irmão, da sua família, e leva-lhe umas malgas de leite como alimento. Ainda lhe limpa o quarto no princípio, mas até ela, pouco a pouco, se distancia.
Nota-se a dificuldade de as pessoas lidarem com este abstruso evento. Inicia-se mesmo um crescendo de insensibilidade no relacionamento com aquele familiar de formas estranhas, embora se reconheça que «apesar da sua forma actual, triste e repugnante, não deixava de ser um membro da família». Cresce ainda a vontade forte de esconder o caso, não dizer nada, numa absoluta reserva.
Da parte de Gregor Samsa, notamos o fundo desejo de se aproximar da família, ver a sala iluminada e os familiares à mesa ou a irmã a tocar música, arrastando uns passos para fora do quarto e chegar-se à cena..
Mas cresce o desconforto dentro de casa e de todos os que nela entram… Endurece o coração e muda a perspectiva e o relacionamento: «eu nego-me a pronunciar o nome do meu irmão diante deste monstro… temos de arranjar maneira de nos livrarmos dele» … É a repulsa e o ódio…
O bicho sente-o e retira-se para o quarto, inanimado e triste, morrendo.
É a mulher a dias, resoluta e fria, que finalmente põe fim a esta tragédia. E a família até dá graças a Deus por esta história ter um fim.
Assim, a família que não saía de casa, vai passear para o campo e a rapariga rejuvenesce na «frescura jovem do seu corpo», palavras finais do texto.
E a consciência ficará tranquila?
António Henriques