Acabei de ler o livro “Metamorfose Necessária – reler São Paulo”, do nosso cardeal Tolentino, que me deixou mais rico. Atrevo-me a fazer algumas considerações sobre o mesmo para quem se interesse por estes temas menos materiais. Curiosamente, ele oferece este livro aos seus amigos não crentes, aqueles que se questionam sobre o sentido da vida.
S.Paulo, realmente, é uma figura especial no universo primitivo do cristianismo. São as suas cartas que estruturam o pensamento teológico, acima da oralidade e da ruralidade que os Evangelhos transmitem. Não se entende bem o que se passou com ele: judeu convicto e culto, terá passado por uma revelação ou conversão profunda e fulgurante, de onde nasce a vocação de anunciar um Cristo que é a razão de ser de todo o seu viver, pensar e viajar.
É Paulo que melhor entende o universalismo da mensagem cristã, abraçando todos na fé de Jesus morto e ressuscitado. Nascido em Tarso, atual Turquia, nas proximidades da Síria, por ali passavam as caravanas dos comerciantes e se apreciava a cultura helénica. Como filho de judeus, conciliou os estudos bíblicos com a formação grega, o que lhe deu facilidades para se sentir à vontade nos ambientes urbanos que frequentou. A sua condição de cidadão romano, que não se sabe explicar bem porquê, também lhe facilitou muito a liberdade de circulação por todo o império. Em Tarso, centro cultural onde se discutia a filosofia estoica, que apregoava a importância da consciência, da liberdade e do desapego das coisas, ao mesmo tempo que se admitia haver uma lei superior inscrita no coração dos próprios gentios (Rom 2:14-15), Paulo soube unir estes temas aos estudos bíblicos, tendo também frequentado as escolas rabínicas em Jerusalém, onde vivia uma sua irmã e Gamaliel era o mestre mais referido.
É bem conhecido o seu “zelo pela lei” e a sua altivez por ser circuncidado, da “raça de Israel” e da tribo de Benjamim, a que pertenceu o rei Saul, de onde lhe deve ter vindo o nome de Saulo. A mesma altivez se nota por ele não viver a expensas da comunidade, sobrevivendo com o seu trabalho de fabricante de tendas (com um tecido grosso urdido com pelo de cabra). Ao contrário do mundo greco-romano, a cultura hebraica aconselhava mesmo a juntar o trabalho espiritual à atividade manual “para não pecar”.
As viagens paulinas dependem muito dos contactos entre comunidades e dos pontos de referência que pré-existem, só sendo possíveis com a criação de uma rede de colaboradores. As próprias cartas só se explicam pela necessidade que Paulo sentia de comunicar com esses grupos de cristãos, aonde era difícil chegar por falta de transportes e devido ao tempo que gastava com o seu trabalho manual.
As cartas de Paulo são a primeira grande reflexão teórica do cristianismo, o que não retira a dificuldade de compreensão de alguns pontos, nomeadamente a relação entre a fé e a lei. Paulo, por vezes, é judeu a defender o valor do cumprimento da lei de Moisés. Outras vezes, acha que a consciência está acima da lei, dando mais relevo à fé. E Lutero foi por aí…
Estas comunidades da diáspora, numa mistura de raças, credos e costumes, são tão heterogéneas que Paulo se vê obrigado a insistir no essencial, o que desagrada aos judeus. Há mesmo o risco de algum mais exaltado o atirar para fora do barco na sua última viagem a Jerusalém, preferindo assim fazer uma parte a pé, pela Macedónia. (At 20:3)
Para abreviar, diria em resumo que Paulo assume a fé em Jesus Cristo morto e ressuscitado como a base de todas as suas vivências, anuncia esta fé a todos, judeus e gentios, criando comunidades vivas de irmãos. É original a sua postura naquela sociedade estratificada, ao destruir todos os tabus: «não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus» (Gal. 3:28). Tolentino de Mendonça diz mesmo que «Paulo não pensa apenas o destino dos crentes. Ele reflete sobre as questões do destino humano e da metamorfose do mundo». (p. 91)
Pode ser que ainda um dia volte a este tema, tão cheio de riqueza.
António Henriques