Mãe, morreste-me há mais de vinte anos, octogenária já. Ficou-me faltando muito a tua presença. Se houvesse céu, tu estarias lá; tu eras crente, eu tornei-me agnóstica. Recordo com saudade profunda ambas: a tua essência e a tua existência. Digo-te que todos os dias me fazes muita falta e também o teu filho querido, morto na guerra, o que fez de ti uma “mater dolorosa”.
Recordo a nossa casa na província, com poço de água de beber, e o quintal ao cimo das escadas. Desse quintal pendia uma latada de parreiras que decoravam uma tosca e vistosa parede de pedra cinzenta. Aí, nesse bocado de terra um pouco exímio, o pai plantara desde o início um limoeiro, as videiras, um abrunheiro e tu, as plantas que amavas: erva cidreira, bela luísa, chá formigo, salsa e algumas sardinheiras de variegadas cores.
Tu foste uma mãe camponesa de que muito me orgulho. As tuas mãos eram belamente ásperas de sachares o escalracho, o montrasto, a erva zorra e o balanco, a tremocilha, plantas que infestavam as searas e tu, precavendo contra os inimigos do nosso pão, as tiravas das searas que o nosso pai semeava na Cerca Velha, na Quinta das Bacorinhas, no Vale Coelho e no Santo Menino. Todas elas percorrias para alindar as nossas searas.
As tuas mãos maravilhosas também amassavam o pão delicioso que nós tantos anos comemos, ignorando a sua perfeição e qualidade.
Essas mãos inesquecíveis também costuraram os nossos vestidos de trobalco, de fioco ou de chita da tabela, os tecidos mais baratos porque a família era numerosa e tu eras poupada.
Crescemos felizes e saudáveis até que chegou o dia da Grande Tristeza que mudou para sempre as nossas vidas.
A mala do Zé, morto na guerra colonial em Moçambique, chegou primeiro que o seu cadáver para lhe fazermos a última coisa – um funeral digno de um jovem talentoso. Nunca quisemos senti-lo como um herói, mas sim como uma vítima de uma guerra injusta de um governo despudorado. Nós não éramos nacionalistas... O pai sempre foi um grande resistente anti-fascista.
Tu, mãe, com as tuas corajosas mãos, abriste a mala chorando copiosamente e leste todas as cartas que nós, irmãos, lhe escrevêramos carinhosamente e essas lágrimas fizeram sulcos fundos no teu rosto. Choraste todo o resto da tua vida aquele filho estremecido.
Tu e o pai vestiram -se de luto carregado, até os vossos olhos negros e a pele da tez comungavam dessa negritude que me queimava a alma.
Menino acima da média, morreu aos 23 anos. Hoje há em Colos uma rua com o seu nome. Aos dez anos, escrevia redacções que o seu professor publicou num Jornal Alentejano. No segundo ano de liceu, dispensou com 17 valores, tendo sido aluno, em todas as disciplinas, de uma irmã que o admirava. No quinto ano do Liceu, obteve em Matemática a nota de 19,8 valores.
Por isso, mãe, te presto esta homenagem singela. Os teus outros filhos foram crianças normais que viste com uma vida com princípio, meio e fim. Deram-te netos e andam por aí num país que continua mal, mas temos o dom da liberdade, nós que fomos hostilizados até ao 25 de Abril por ter um pai que lutava por um regime democrático. Se houver céu, (e eu gostava que houvesse!), tu lá estarás com o teu filhinho e lá te chegará o testemunho desta homenagem.
Maria Vitória Afonso
Quero prestar homenagem á nossa colega Maria Vitória Afonso pelo magnífico trabalho com que nos brindou. Este é um tema que eu vivi em diversos momentos da minha vida e que infelismente e por muito que se queira esquecer por vezes não é nada fácil. Por isso a colega deu-nos um relato muito bem deliniado das difíceis situações e do marasmo em que viviamos debaixo duma ditadura que nos foi imposta e que se perpetuou no tempo
Bem haja por este testemunho.
Alberto Cipriano Ferreira