O antes
Em 1973, propus-me alterar de vez o meu estar na vida, passando de um estado civil para outro, o que significava perder a estabilidade social e profissional, isto é, “passar de definitivo a provisório”, como me dizia o Dr. Marcelino. O futuro a Deus pertencia, já que tinha de procurar emprego e regular a minha situação militar (os estudos livraram-me da tropa), sabendo que na ocasião havia deputados, nomeadamente o Dr. Casal Ribeiro, a ameaçar-nos com a ida para a guerra nas colónias. Seja o que Deus quiser, vamos em frente…
O dia
Numa quinta-feira, sem aulas, batem-me à porta pelas 9 horas, o que não era comum! “António, há uma revolução em Lisboa… Há militares na rua”! A rádio é a ocupação do dia, embora as notícias não sejam muitas e sobretudo dominava a incerteza pelo resultado desta revolta militar, que tanto podia derivar para um banho de sangue, para o aprisionamento dos revoltosos, como acontecera em 16 de março com a insurreição das Caldas, ou para o fim de um regime ditatorial que vigorava já há 40 anos.
É verdade que os desejos de mudança política eram muitos. Os apaniguados do regime bem nos perseguiam. Havia ameaças de prisão a cada “dislate”, que os informadores da Pide não perdiam. Bastava dizer que os angolanos têm, pelo menos, direito a dizer se querem ser independentes… Mas, se “Angola é nossa”, como podes falar assim? Cautela, amigo… A vingança era o recurso à música dos insurgentes da época, com as cassetes e os discos do Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira ou Luís Cília, que nós guardávamos por detrás dos livros na estante!
Assim se passou o dia em Portalegre, da rádio para a TV ou para as conversas com amigos. Felizmente, foi vitorioso esse dia 25 de Abril!
O depois
O que mais se notava era a alegria nos rostos, uma arreigada distensão de sentimentos e o puro desejo coletivo de Portugal se tornar um país que melhor servisse as necessidades de todos os cidadãos. Também havia alguns mais circunspectos, de poucas conversas, que tinham medo do futuro sem rei nem roque…
Chega o 1.º de maio e lá vou eu no meio da multidão a engrossar a manifestação espontânea que nesse lindo dia percorreu as ruas e jardins da cidade. Bonito de ver!
Mais tarde
Os anos passam, as mudanças acontecem e nem todas são justas. Venho para a capital e, a viver com o pai numa casinha rural, construída a pulso e sem licença camarária, vejo o progenitor, bom artista profissional e bem quisto por muitos, a ser chamado “fascista” só porque se distinguia por ter mais uns tostões que os vizinhos!
Com o passar dos dias, começo a notar que há gente a tomar conta das palavras, a assenhorearem-se da comunicação oficial e oficiosa, como iluminados que tudo sabem e tudo querem. Aconteceu até que eu continuava a fazer perguntas (um modo especial de levar outros à reflexão!), mas até isso me era negado: «estes professores que acham que os alunos não podem decidir sozinhos!» E quando estes (os alunos da noite) decidem “acabar com a greve nos cursos noturnos”, os colegas chamaram-nos de fascistas!…
Estou a falar assim, mas reconheço que os ambientes que frequentei nestes 50 anos foram suficientemente tolerantes para que pessoas diferentes pudessem conviver, trabalhar em conjunto e construir realidades gratificantes para todos.
Confesso que muitos quiseram assenhorear-se dos valores de Abril, como se o sol não nascesse para todos. Algumas vezes, o silêncio era a resposta aos cravos que parece só a alguns pertenciam, tão convencidos das suas verdades…
Só que, com a força da minha vida em família e com a minha formação de pessoa a querer saber mais e a realizar-se em colaboração com os outros, sempre me mantive ativo, realizador, desejoso de ver outros felizes. E foi esta atitude positiva que me salvou.
Hoje, vivemos num mundo difícil, com liberdades ameaçadas, com dificuldade de aceitar os que são diferentes, a ponto de até a democracia estar ameaçada.
Mas espero que os valores de Abril de tolerância, de liberdade, de colaboração nos levem a um Portugal mais justo para todos.
António Henriques
25 de Abril ,1974 foi um tempo que me trouxe esperança e alegria a todos nós Bom texto descrevendo a vida de um tempo que já não existe mas também alertando para os valores de Abril de tolerância e de liberdade, tenho fé que virá um tempo melhor para todos nós e assim seremos felizes . Um abraço.
É verdade. Tempos ricos em mudança pessoal e comunitária. Também tempos de alguma incerteza. Felizmente, criaram-se estruturas sociais e políticas que têm resistido. Como você diz, eu também “tenho fé que virá um tempo melhor para todos nós”. Abraço do Ant. Henriques