Excerto da apresentação do livro “Sonhos traídos” da autora São Tomé, em Encontro do “Mensageiro da Poesia” no Auditório da Junta de freguesia de Amora em 11/11/2023
A autora com este livro fez um extraordinário exercício de memória. Fiquei pasmado com os pormenores com que narra ou descreve estas muitas histórias.
O conteúdo do livro são os acontecimentos vividos pela São Tomé em Angola desde a sua adolescência até 1975. Acho que todos sabem que esta época é memorável pelas transformações havidas nas chamadas colónias portuguesas, onde os nativos começaram a revoltar-se com o poder dominante e a querer assumir a sua independência. Desde as primeiras revoltas, em que houve chacinas de colonos, até à declaração de independência em 1975, Angola passou a ser palco de muita perturbação na convivência entre os que mandavam e os que queriam mandar. E é nestes tempos conturbados que a São viveu, depois de muitos anos de muita felicidade que começaram na sua adolescência.
Os exercícios de memória, embora por vezes feridos de algumas falhas que só uma investigação aturada resolve, são de um valor substancial para a verdade histórica e são sobretudo um alimento positivo para aferirmos o peso do nosso passado. São ainda um processo de catarse, em que pela escrita conseguimos ultrapassar momentos infelizes e nos tornamos mais conscientes e fortes, o que nos ajuda também a distinguir e separar o muito de bom ou de mal que fizemos.
A São Tomé, muito conhecida entre nós na sua vertente de poesia, ligada à Associação “Mensageiro da Poesia”, apresenta-nos agora uma narrativa em prosa, com alguns entremeios de poesia, é verdade, narrativa composta de mais de 120 estórias vividas em Angola com as quais encheu estas 280 páginas.
Naquele país, viveu em várias cidades (Uíge, Cabinda, Benguela, Luanda…) e em duas fazendas (Gabela e Conceição no Uíge), correspondentes ao centro e norte do país, dedicando-se com o marido à exploração agropecuária e ainda à construção civil.
A escrita da autora
1 - Começo por destacar a linguagem abundante que usa, chegando a criar descrições quase líricas com grande variedade de verbos e adjetivos. Vejam como ela descreve uma viagem em África.
O mesmo acontece na riqueza vocabular das narrações das Danças Tribais.
2 - A autora apresenta uma linguagem colorida, muito rica e tecnicamente apropriada para explicar atividades agrícolas ou o manuseamento das máquinas, sinal do seu entrosamento com toda a vida da Fazenda ou da SETAL, a empresa da família.
Ela tem mesmo as mãos na massa e não só quando coze o pão. Querem exemplos?
Ensina-nos como fazer uma plantação de café
A manutenção de máquinas nos fins de semana
Tempos inesquecíveis
«Era uma vida de muito trabalho, mas muito saudável e compensadora. Plantar, ver crescer as plantações e depois colher os frutos do nosso trabalho era de uma satisfação indescritível.» (p. 220)
«Hoje, quando olho para trás no tempo, pergunto-me: como é que eu não tinha receio de me aventurar por aquelas estradas desconhecidas e perigosas, onde durante dias a fio não passava uma única viatura?» (p. 245)
NOTA: - todos estes episódios são recordados sem mágoa e com respeito pelo povo africano, com uma tolerância sem fim para com os fracassos ou erros das pessoas com quem se relaciona…
Fim de um sonho
As últimas páginas reportam incidências históricas ligadas aos Acordos de Alvor de 1975, em que o governo português entrega o poder de Angola aos três movimentos partidários – FNLA, MPLA e UNITA. De uma luta entre colonizadores e colonizados passou-se a uma luta pelo poder entre os três movimentos, o que não reduziu o medo, a angústia e a incerteza pelo futuro. «A população branca perdeu a esperança de que o país poderia um dia voltar à normalidade, sem a permanente ameaça de morte sobre as suas cabeças.» (p. 268)
Em 15 de Março de 1975, ela e todos os familiares partem na ponte aérea para Portugal.
«Assim acabou o nosso grande sonho que transformou as terras bravias, às margens do rio Luinga, em terras altamente produtivas.» (p. 268)
- Até 15 de Março de 1961, «Angola era o que podia chamar-se de “Paraíso na Terra”. Tudo era tranquilo e seguro. Havia um sentimento coletivo de solidariedade e entreajuda como poucos no resto do mundo». (p. 52) A confiança funcionava como base das relações humanas.
- «Desde o fatídico 15 de Março de 1961 até ao dia 15 de Março de 1975 ….. Angola deixou de ser um pedaço de paraíso africano e se tornou num palco de guerra.» (p. 272)
Conclusão
O livro, com mais de 120 episódios, é um manancial de informação e de recordações da autora. Todas estas narrativas podem não ser a história, podem não ser todas avalizadas pela investigação histórica, mas foi assim que a São Tomé as viveu.
E não me digam que não vale a pena debruçar-nos sobre a nossa própria história, ao menos para alegrar o nosso presente, tão cheio de coisa nenhuma ou pouco mais.
Agora, digo à São: Parabéns. Gostei de ler a sua história. E note:
«A VIDA PODE ROUBAR-NOS TUDO, MENOS A MEMÓRIA DOS DIAS FELIZES!»
António Henriques
FOTOS DO EVENTO