Nesta altura, supostamente, era natural que se estivesse a pensar no rescaldo das tradicionais festas populares de Santo António, na antevéspera das festas de São João e nos preparativos para as festas de São Pedro.
Por razões de ordem pandémica, estas manifestações de religiosidade popular foram canceladas por este ano e os santos mais populares ficaram em paz na sua Igreja, no recanto dos seus altares.
Sim, em paz, mas, não esquecidos pelos seus fiéis devotos.
No que ao santo António diz respeito, única data celebrativa vivida até à elaboração deste texto, não foram sinalizados quaisquer movimentos de massas populares. Os fogareiros que permitiam assar dois quarteirões de sardinhas duma assentada, em simultâneo com os pimentos, foram substituídos por mini fogareiros de uso doméstico!
Este cenário de défice lúdico, cultural e de ritos religiosos vai repetir-se pelo São João e pelo São Pedro.
E os Santos Populares como irão reagir?
Habituados a habitar na zona de desconforto, enquanto viventes na terra, não vão, certamente, valorizar este pequeno incidente; reclamarão talvez que no próximo ano as celebrações sejam vividas em duplicado!
De Santo António não são conhecidos registos de sofrimento durante a sua caminhada em vida, na terra, rumo aos dons da santidade.
De São João (João Batista), o pregador, filho de Zacarias e Isabel e primo de Jesus Cristo, esteve prisioneiro dez meses antes do dia da sua decapitação. Mas, mesmo assim, não está de mal com os homens e continua a ser símbolo de fermento para os famosos arraiais joaninos.
A propósito deste São João, o Batista, convém referir que nada tem a ver, a não ser o nome comum e também ambos serem cristãos, com o famoso São João Evangelista a quem é atribuída toda a literatura Sagrada que constitui o Corpus Joanino: cartas, o IV Evangelho segundo São João e o Livro do Apocalipse, o último texto da Bíblia (Sagrada Escritura).
São Pedro fecha o ciclo da tríade “santos Populares”. Foi o primeiro bispo de Roma e também terá sido assassinado nesta cidade. Continua a oferecer as suas graças de santidade em favor da animação de arraiais, na noite de 28 para 29 de junho. É venerado no dia 29.
Como facilmente se percebe, a religiosidade popular em Portugal manifesta-se densamente numa veneração muito especial pelos santos, logo, é uma realidade viva na Igreja e da Igreja. Assume formas e cores muito diversificadas, mas sempre sustentadas pela dimensão popular.
No concreto destas manifestações, as romarias são talvez o figurino que melhor espelha esta realidade. Multiplicam-se um pouco por todo o país, principalmente nos meses de verão.
A organização destas romarias, em geral, é da responsabilidade duma comissão, a comissão fabriqueira, nomeada pelo povo por um período de dois ou três anos.
Lêem-se nestes eventos dois eixos: o sagrado e o profano. Estes eixos cumprem um papel social agregador ao colocar várias pessoas juntas numa prática celebrativa.
O eixo galvanizador que faz com que centenas ou milhares de romeiros acorram a um determinado local é, supostamente, o sagrado. Repare-se na forma e conteúdo de assinalar os eventos: festas em honra deste ou daquele santo. A palavra chave é, sem dúvida, “honrar, homenagear”, que pode ser em ambiente rural ou urbano.
Esta disposição natural do homem em se deslocar para homenagear o santo, traduz de forma muito significativa as suas relações com o sagrado ou o divino. É uma manifestação viva da força da fé, que o povo supõe que tudo é obra de Deus, tudo vem de Deus.«
Entre os eixos sagrado e profano não existe propriamente uma barreira ou definição com limites específicos que se desenvolvam em realidades diferentes. Os dois eixos coexistem no tempo e no espaço. Ao mesmo tempo que está a ser celebrada a Sagrada Eucaristia no interior do templo ou campal, ali bem próximo, os agentes de diversões apresentam propostas atrativas para os foliões, que respondem prontamente à chamada. Mas o pacote da proposta vai enrolada em ondas sonoras e tonitruantes de música popular portuguesa, capazes de espantar toda a passarada e ferir os tímpanos dos forasteiros menos sensíveis!
Na minha adolescência, a homilia da missa era consagrada à santa Padroeira. Era convidado um Pregador que enaltecia até à exaustão às virtudes da santa mártir que se deixou devorar pelos leões ou então foi lançada às feras famintas sem que estas ousassem tocar-lhe! Milagre. Os fiéis comovidos secavam as lágrimas com as pontas dos dedos plantados em mãos ásperas e calejadas e o pregador, sempre atento à sensibilidade da assembleia, ia doseando a intensidade e o conteúdo sentimental e devocional da pregação de forma a produzir uma reserva de fé que desse para alimentar aquelas almas até à próxima romaria que seria um ano depois.
Atualmente e segundo a minha experiência, a missa da romaria é celebrada segundo o calendário litúrgico e, terminada a celebração, o pároco limita-se a dizer: agora vai sair a procissão em homenagem à santa Padroeira.
Como os tempos mudam ou sinais dos tempos!?
O povo, sobretudo os jovens, nada conhecem sobre o percurso de santidade do seu santo padroeiro!
Mas será que sentem essa necessidade?!
Certamente que sim. O ser humano nasce com as sementes do divino e no universo português a maioria é cristã pelo santo Sacramento do Batismo e muitos ainda frequentaram a catequese. Também não assinaram uma declaração de divórcio com o cristianismo romano; simplesmente, numa determinada fase da vida e isto é transversal a todos os jovens, a sua relação com o sagrado fica empobrecida, porque o sonho de uma vida com sucesso social e económico sobrepõe-se à prática de exercícios espirituais. Está na mão dos pais, e também da Igreja, fazer da casa de Deus um espaço onde reine a alegria e a voz deles seja ouvida e considerada, especialmente em momentos de crise, sem deixarem de pensar numa carreira promissora, de sucesso.
José André Fernandes