Há poucos dias, fez anos o Aníbal Henriques, meu primo direito… Este nome está a puxar pela minha memória. É que muitas coisas aconteceram na vida dos dois que não esquecem de todo. Outras desaparecem no turbilhão do armazenamento mental, ou porque se trocaram as caixas ou porque estavam muito cheias e começaram a deitar fora. Na minha idade, acontece!
Os nossos pais nasceram na Ribeira do Vale da Ursa, ali perto dos Cunqueiros e Isna de Oleiros, para vocês localizarem, em plena zona do Pinhal beirão.
Da aldeia tenho poucas memórias, mas ainda me lembro das camadas de neve que enregelavam os pés. Dizia o meu pai: – “vem atrás de mim e põe os teus pés nas pegadas dos meus para andares melhor…” Mesmo assim, com dificuldade eu enterrava as botas naqueles buracos fundos que meu pai deixava e lá ia caminhando. Eram uns bons quilómetros. Outra recordação é o vinho morangueiro, das uvas americanas (assim se dizia) de pele rija que sempre alegravam os dias… A agricultura era difícil, só com encostas de sobe e desce, embora nunca faltasse a água. Bem diferente era o meu Ripanso, de terras mais planas e férteis.
De lá saíram os nossos pais quando a tropa os chamou. Meu pai aprendeu, entretanto, o ofício de carpinteiro casando para o Ripanso e meu tio, depois da tropa, foi servir o país na GNR, arrastando a esposa da mesma aldeia e indo morar para a Sertã.
Assim, nas férias, por mais de uma vez, pude ir gozar uns dias à Sertã, no tempo em que o quartel da GNR era na Alameda da Carvalha, um antigo convento hoje transformado em hotel. Uns anos mais tarde, aconteceu o mesmo em Santarém, para onde se mudam os pais do Aníbal. Convidam-me para ir até à Scalabis, onde pela primeira vez pude passear pelas Portas do Sol, admirar o gótico da Graça e espraiar os olhos pelas maravilhas do rio Tejo e da lezíria.
Hoje, pelo telefone, disse ao Aníbal que ele era um gaiato ao pé de mim, nos seus 67 anos. Mais gaiato era quando se batizou e arranjou como padrinho o meu pai. Nasceu assim outro Aníbal. Mais uma razão para maiores aproximações. E padrinho que se preze não esquece o afilhado. Talvez como agradecimento pelas atenções que os seus pais tiveram comigo, quando o Aníbal fez o 2.º ano liceal, meu pai convidou-o para ir passar uns dias ao Estoril, para onde tinha ido viver este carpinteiro que passou a chamar-se Mestre Aníbal, em terras de progresso e de turismo.
E agora começa a aparecer o tal comboio do título.
Como é que o Aníbal vai da Sertã para o Estoril? Trabalhava eu no Colégio de S.to António em Portalegre e já tinha comprado uma Vespa de 250cm, para verem aquela potência! E estávamos em julho de 1966.
Passo pela Sertã, pego no embrulho da roupa e no gaiato e ala para Lisboa por essas estradas fora (se calhar nem a palavra autoestrada existia!). Em Alpiarça, foi a primeira e única paragem para almoçar. Mas soubemos escolher um restaurante em que pudéssemos ver na TV o memorável jogo do Mundial de Futebol 66 – o Portugal-Coreia do Norte – 5 a 3.
O primo Aníbal, encantado com a viagem de moto por terras desconhecidas, deliciou-se com o bife com batatas fritas (pois então, o que havia de ser?!) e esperámos pelo jogo. Ora bolas, meia hora depois já Portugal perdia por 3-0… E quem aguenta o Aníbal? Cheio de nervoso miudinho, diz: “Primo, vamos embora, não quero ver mais!” O Tonho, mais calmo, insiste para esperar um bocadinho, que o Eusébio ainda pode mexer com o resultado. E mexeu mesmo. Mal chegou o 3-1, o Aníbal volta a olhar para o jogo, que aos 90 minutos terminou nos memoráveis 5 a 3.
Saímos de Alpiarça cheios de alegria e capazes de galgar seca e meca, por vias e terras desconhecidas, que era a primeira vez que eu usava a minha carta de moto por aquelas paragens, mesmo em Lisboa. Carta de moto que me deixou mal em Évora, pois tive de repetir o exame por não saber fazer oitos e o pneu ter batido no lancil da estrada (também tive de chumbar uma vez na vida, para ser igual aos outros, não é?)…
Ao chegar a Lisboa, eu já tinha magicado como iria ultrapassar aquela grande cidade. Desviava de Sacavém para Moscavide e enfiava pela rua junto do rio, sem nunca me perder dentro do labirinto citadino.
E assim foi: ia explicando ao Aníbal as poucas coisas que eu já tinha visto na capital, passámos pelo Terreiro do Paço, Cais do Sodré, Alcântara, sempre em frente e havemos de chegar ao Estoril.
Às tantas, grita o Aníbal: “Primo, olhe aquele comboio pequenino”… Eu olhei para o do Cais do Sodré, mas esse já ele conhecia. O que era novidade era o elétrico de Belém. E à falta de outro nome, vá de chamar-lhe comboio! Uns dias mais tarde, ainda andámos nele pelas ruas de Lisboa. Agora, é quase só para turistas, se o Covid deixar!
Nunca mais esqueci este acontecimento, que terá sido muito especial para não desaparecer da memória, quando nós sabemos que ela começa a transbordar e a selecionar o que lá fica encaixado.
Estive a reviver, que quer dizer “voltar a viver”. E neste presente estéril que o Covid provoca, talvez seja a melhor maneira de sentir o prazer dos dias.
António Henriques
Muito obrigado por este belo trabalho que nos faz recordar o nosso belo tempo antigo.
Conheço muito bem essa zona da Sertã aonde eu vou muitas vezes pois tenho família em Cernache do Bonjardim e em Castelo Branco e como disse por vezes vou lá passar uns dias pois é uma região onde gosto de estar e então aproveito para conhecer tudo em redor pois que tem muitas coisas a descobrir.
Um abraço do
Alberto C. Ferrreira
Obrigado, Alberto. Assim nos vamos conhecendo melhor e sentindo a realidade das nossas raízes. Se calhar até bebeu vinho americano!!!
António Henriques
Muito Obrigada Sr. Professor. Gostei da sua história! Ela me ajudou a reviver o meu tempo de jovem também nas minhas peripécias de preparação e expectativa em arranjar um emprego que me desse estabilidade no então, meu futuro! Felizmente consegui com muito trabalho e força de vontade. Hoje, graças a Deus, tenho a minha reforma e, se Deus quiser, não serei pesada a ninguém na minha velhice!
Em 1966 tinha já as bases do que viria ser a minha profissão e Já estava empregada! Muito obrigada. Continuação de boa Saúde Saúde. Lurdes Martins
Olá, Lurdes! Muito obrigado pelo seu comentário, sinal de que acompanha as nossas exposições mediáticas, mesmo a distância. Realmente, é bom termos a nossa pensão, que nos faz viver a vida sem grandes sustos. No entanto, a nossa fragilidade é sempre grande, nunca sabemos o que acontece no dia de amanhã. Vamos vivendo como se pode e que o Covid nos deixe em Paz. Abraço amigo do António Henriques
Uma história tão fascinante como o deslumbramento que o Aníbal sentiu pelo comboio pequenino. Uma teia de relações entre adultos, entre crianças, em que uns e outros se relacionam num ambiente ditado pela amizade e compreensão. Mas também me fez recuar ao ano de 1966. Tinha eu 22 anos e estava caminho do terceiro ano de comissão militar, em Moçambique Curioso, ouvi esse tal relato, Portugal/ Coreia , estava eu de sentinela, com uma G3 ao ombro, no cais de Lourenço Marques, a garantir a segurança do navio de guerra N.R.P. Pacheco Pereira e da sua guarnição que era de 180 homens. Era eu um menino, e já com quase 6 anos de tropa (Marinha). Obrigado pela partilha.
Ainda bem que o meu texto está a acordar a memória dos leitores. Podemos recriar aqui muitos pedacinhos de história. Obrigado, José André.