A boneca desejada
No fundo do vale encaixado, corria o rio turbulento e gelado. O Tempo estava frio, a neve cobria o cume de cada monte e as encostas mais sombrias. O comboio, que levava e trazia sonhos e saudades de quem longe vivia, passava em lenta marcha, no seu caminho-de-ferro, suspenso sobre as escarpas, para que os passageiros desfrutassem a beleza agreste da paisagem.
O Natal estava a chegar, era preciso preparar a consoada e a vinda do Menino Jesus, que trazia as prendas para os meninos e meninas bem comportados. Também era tempo de visitar os nossos entes queridos, que moravam mais a jusante, na outra margem do rio.
Eu, com apenas 6 anos de idade, sonhava com uma linda boneca com a cara de porcelana, vestido cor-de-rosa com rendas e lacinhos e sapatinhos de verniz. Minha mãe tinha-me prometido que o Menino Jesus ia dar-me uma boneca igual, mas, para isso, era necessário ir visitar a minha avó materna, antes da noite da consoada, pois era ela que guardava esse tesouro que o Menino Jesus tinha lá deixado para mim.
Empreendemos a viagem pela manhã, para apanhar o comboio na estação mais próxima, que ficava a uns poucos quilómetros de distância. Minha mãe, simpática e tagarela, cumprimentava e conversava com toda a gente que encontrava pelo caminho, sem dar conta do tempo a passar. Quando chegámos à estação, o comboio do meio-dia já tinha partido e não havia outro nesse dia. Para não voltarmos para casa, minha mãe decidiu seguir viagem a pé, por uma dúzia e meia de quilómetros sobre a linha do comboio. No início, achei divertido ir aos pulos sobre os carris, mas as minhas perninhas começaram a ficar cansadas e tropeçavam, atrasando assim o ritmo da marcha. Logo no início da viagem, juntou-se a nós um cãozinho desconhecido, que não nos largou mais, como se fosse um anjo protector. Ele foi-me mostrando a forma mais segura de andar sobre as travessas da linha, sem tropeçar, ciente que aquilo não era o caminho ideal para crianças.
O dia já tinha escurecido quando chegámos ao lugar onde tínhamos que atravessar o rio. O barqueiro já tinha dado como encerrado o seu expediente, mas lá cedeu aos apelos da minha mãe, para nos levar até à outra margem. Chorei desesperadamente por ter que deixar o nosso companheiro de quatro patas, que ficou sentado em cima da linha do comboio, até ver-nos desaparecer no meio da escuridão.
Devido ao frio e ao avançado da noite, pernoitámos naquela localidade, em casa de uma amiga da minha mãe. Só no dia seguinte chegámos a casa da minha avó materna, que ficou feliz por nos ver, mas não deixou de repreender a minha mãe por se meter em tal aventura com uma criança pequena.
Foi de facto uma grande aventura até lá chegar e, por fim, poder abraçar e beijar a minha querida avó e a tão desejada boneca.
Conceição Tomé (São Tomé) Corroios – Portugal